Bismael B. Moraes
"Nenhum julgamento serviu, como o de Jesus, para uma negação tão insistente, obstinada e acatada de que foi um erro judicial e deu margem a um crime jurídico". (do Juiz Haim Cohn Hermann, ex-Presidente da Suprema Corte de Justiça de Israel).
SUMÁRIO: 1- Introdução. 2- Um Juiz em busca de respostas. 3. Confronto: Evangelhos x Fontes Jurídicas. 4- Datas dos Evangelhos e seus testemunhos. 5- Análise do Evangelho de Marcos. 6- Análise do Evangelho de Mateus. 7- Análise do Evangelho de Lucas. 8- Análise do Evangelho de João. 9- Jesus foi condenado por Tribunal Judeu? 10- Controvérsias Evangélicas e as Leis Romanas e Judias. 11- Mais coerente é o Evangelho de João. 12- Os relatos evangélicos e a realidade histórica.
1. INTRODUÇÃO
Tenha sido por arraigada sedimentação religiosa e dogmática, ou por interesse de análise acadêmica da Teologia, ou por motivos políticos e ou filosóficos, a verdade é que as questões relacionadas à vida e à morte de Jesus, em regra, sempre foram objeto de discussão no mundo todo. (Houve até quem, de forma estapafúrdia, ousasse dizer que essa coisa de religião, no fundo, foi uma invenção do homem fraco e covarde, a fim de manietar e controlar os super-homens...).
Mas, aqui e agora, não vem ao caso eventual questionamento entre religiosos e ateus, entre fiéis e cépticos. Entretanto, na busca do conhecimento, todo trabalho sério, especialmente o de pesquisa, se faz merecedor de reflexão. E é isso o que se pretende: trazer, para reflexão, uma síntese sobre O JULGAMENTO DE JESUS, O NAZARENO.
O tema decorre da leitura do livro de autoria do magistrado Dr. Haim Cohn Hermann, nascido em 1911, ex-Presidente da Suprema Corte de Justiça de Israel, publicado em Inglês, em 1967, com o título "REFLECTIONS ON THE TRIAL AND DEATH OF JESUS", e traduzido para o Português, por Maria de Lourdes Menezes, como "O JULGAMENTO DE JESUS, O NAZARENO", já em 5ª edição, publicação da Imago Editora, Rio de Janeiro, 1990.
2. UM JUIZ EM BUSCA DE RESPOSTAS
Trata-se de uma pesquisa científica do Juiz Haim Cohn, de forma criteriosa e sem pender para discussões doutrinário-religiosas, apenas com o intuito de levantar – como bem esclarece - a verdade da mácula que historicamente pesa sobre os judeus pela morte de Jesus, apontados, em regra, como responsáveis por aquele evento, tão somente com base em registros evangélicos.
Essa empreitada é levada a efeito pelo magistrado Cohn, através da exegese do Direito da época em que Jesus viveu, na busca de respostas para questões como estas: - Que crime praticou Jesus? Quem foi o responsável por Sua prisão? Qual a Lei ou o Direito que Ele violou – da Judéia ou de Roma? Por quem foi Ele julgado e condenado? Quem ordenou a Sua crucificação? A quem imputar a Sua morte – aos judeus ou aos romanos?
Para essa obstinada pesquisa jurídica, sociológica e de costumes, de quase vinte séculos passados, o Dr. Haim Cohn analisou e comparou e Velho Testamento e o Novo Testamento da Bíblia, os antigos Talmudes Jerosolimitano e Babilônico, citando 92 obras de autores diversos, em latim, inglês e, principalmente, em alemão (talvez pela forte influência da Igreja sobre povo germânico), e mais 12 fontes hebraicas, 10 fontes judias, 6 fontes cristãs e 21 fontes romanas, todos da antigüidade, indo ainda à exegese da Mishná ou Michna (codificação da lei oral pós-bíblica realizada pelos sábios, após a queda do Estado judeu, para, a despeito da perda da independência política, preservar a estrutura nacional jurídica) e do Tora (lei mosaica em pergaminho). Dissecou, com apoio no material pesquisado e com base em deduções lógicas, as formas de julgamento do Sinédrio, Tribunal Judeu, com 71 membros, formado por sacerdotes, anciãos e escribas, (para julgar questões criminais e administrativas, bem como delitos de ordem política), ao qual Jesus foi submetido.
3. CONFRONTO: EVANGELHOS x FONTES JURÍDICAS
O Juiz Cohn, depois de registrar que, somente neste Século XX, já foram escritos mais de 60.000 (sessenta mil) livros sobre Jesus, e, dentre eles, vários sobre o Seu julgamento, mostra que o trabalho em tela tem por meta a tentativa de encontrar uma explicação convincente para os fatos e acontecimentos que foram descritas em fontes não-jurídicas (os Evangelhos), indo buscar tal explicação no acúmulo de conhecimentos que "possuímos sobre as instituições e os conceitos jurídicos que existiam naquela época e lugar". E esclarece que, para o empreendimento, "e valor dessas fontes, seja como fontes sagradas (teológicas) ou factuais (históricas), está fora de discussão"; não serão convertidos em fontes jurídicas. A idéia da pesquisa é confrontar os fatos (descritos nos Evangelhos e noutras fontes) à luz do Direito Romano e sua aplicação, bem como diante das leis judias em vigor por volta daquela época.
Na introdução do seu livro, aquele magistrado faz uma advertência: "Não podemos afirmar que a nossa atitude seja compartilhada por todos os juristas que já se ocuparam desse tema até agora. Muito ao contrário: tenho diante de mim quatro livros, de juristas ingleses e norte-americanos – Lord Shaw, Taylor Innes, Powell e MacRuer, todos eles cristãos fervorosos... Eles consideram tudo que está escrito no Novo Testamento como material jurídico por excelência, uma espécie de testemunho válido sobre o que não pode haver dúvidas".
4. DATAS DOS EVANGELHOS E SEU TESTEMUNHO
Em sua pesquisa científica dentro do Direito, o Dr. Cohn mostra que nenhum dos quatro Evangelhos (de Marcos, Lucas, Mateus e João) inclui depoimentos de testemunhas presenciais dos eventos que descrevem. Com base no livro "Jesus and the Origins of Christianity", de Goguel, está demonstrado que o Evangelho de Marcos foi escrito por volta do ano 70 da Era Cristã (do nascimento de Cristo); o Evangelho de Lucas data, aproximadamente, do ano 85; e o Evangelho de Mateus veio à luz, mais ou menos, no ano 90; e o Evangelho de João, por volta do ano 110.
Assim, tomando como fonte o pesquisador Winter, em seu livro "On the Trial of Jesus", escreveu o Juiz Haim Cohn: "Logo, o Evangelho de Marcos foi escrito cerca de quarenta anos após a crucificação de Jesus, e Lucas escreveu, mais de duas gerações depois desses acontecimentos. Disso se depreende que os depoimentos ali existentes não correspondem a testemunhas presenciais". E acrescenta ser possível que os relatos dos Evangelhos "sejam uma tradição conservada pela congregação de crentes e transmitida de geração em geração. Mas, se serviam para saciar a curiosidade biográfica dos crentes sobre a morte de Jesus, não continham nenhum tipo de documentação jurídica". Os Evangelhos, assim, não foram escritos como bases históricas, mas como meio de difundir o cristianismo, aí recorrendo, por vontade do evangelista – como é o caso de João – a utilização livre de sua imaginação, "para acrescentar detalhes e melhorar a descrição, não aceitando limitações antiquadas ao apresentar, não história mas teologia".
Consta da pesquisa de Dr. Haim Cohn o registro de um dos mais antigos escritores, que teria vivido entre o ano 55 e o ano 115, de nome Tacitus, o qual, em seu "Annales", com tradução de Dvoretzky, em 1962, "relata de passagem, para explicar o significado do nome Cristão (de seita perseguida durante o reinado de Nero), que Cristo é o pai de todos os cristãos e que foi executado na época do Imperador Tibério pelo Governador Pôncio Pilatos".
Diz o magistrado Cohn: alguns pesquisadores sustentam que "de tudo que está escrito nos Evangelhos, só podemos aceitar que Jesus viveu e foi crucificado, sendo o resto meros adornos para maior glória da fé". E acrescenta que "a interpretação dos acontecimentos descritos nos Evangelhos é uma questão aberta, e todo aquele que os ler ou analisar poderá fazer a sua própria interpretação... No que diz respeito às causas do julgamento de Jesus e à sua condenação, como também às circunstâncias, ao fundamento e ao objeto do julgamento, não aceitaremos o que está escrito nos Evangelhos como testemunhos indubitáveis; nossa atitude para com eles será a de um juiz cuidadoso e neutro, com a liberdade absoluta de quem tem diante de si um livro aberto".
5. ANÁLISE DO EVANGELHO DE MARCOS
Na análise dos quatro Evangelhos, começa pelo Evangelho de Marcos, registrando, em síntese, o seguinte:
Judas, discípulo de Jesus, segundo a tradição, o entregou aos perseguidores, com um beijo, no momento em que o Nazareno repousava no Horto de Getsêmani;
os perseguidores – uma turba com espadas e porretes – vinham da parte (por ordem) dos principais sacerdotes, escribas e anciãos;
Jesus foi conduzido à casa do Sumo Sacerdote (Caifás, como registra Mateus), à noite, onde os principais sacerdotes, anciãos e escribas, em domicílio (reunidos), buscaram testemunhos contra o mesmo, para entregá-lo à morte, mas não o conseguiram; (era um interrogatório noturno);
no meio do concílio, o Sumo Sacerdote perguntou a Jesus: "Nada respondes ao que testemunham contra ti? És tu o Cristo, Filho de Deus?" E Jesus respondeu: "Eu sou", momento em que o Sumo Sacerdote, rasgando sua veste (que era o costume, ao ouvirem o que entendiam por blasfêmia), disse: "Que mais necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia?" E todos o declararam digno de morte e alguns cuspiram-lhe e deram-lhe murros e bofetadas;
de manhã, levaram Jesus, amarrado, a Pôncio Pilatos, Governador da Judéia, e este perguntou: "És tu o Rei dos Reis?", tendo o Nazareno respondido: "Tu o dizes". Como os principais sacerdotes O acusavam muito, Pilatos voltou a interrogar Jesus: "Nada respondes do que te acusam?". E Jesus calou, admirando-se Pilatos;
e como era costume libertar um preso por ocasião de festividade (e era festa da Páscoa), Pilatos perguntou ao povo (que tinha direito a tal pedido) se deveria perdoar a pena do homem a quem chamam Rei dos Judeus ou a de Barrabás (um homicida), a população, incitada pelos líderes dos sacerdotes (que invejavam a fama de Jesus), pediu a libertação do homicida e a morte de Jesus: "Crucifica-o";
e Pilatos, mesmo tendo dúvidas quanto ao crime de Jesus (-"que mal fez ele" – perguntou), atendeu a vontade do povo;
e os soldados romanos levaram Jesus ao pátio do tribunal (Sinédrio), convocando a companhia (de soldados) para as zombarias e os maus tratos, conduzindo-o depois à crucificação, no lugar chamado Gólgota ("lugar da Caveira");
os soldados obrigaram o transeunte Simão Cirineu (da cidade de Cirene) a acompanhá-los, carregando a cruz (muito pesada para Jesus), onde seria realizada a crucificação;
os soldados deram a Jesus vinho com mirra, que ele não bebeu, e, depois de crucificá-lo, repartiram entre si Suas vestes, deixando-o entre dois ladrões, isso na terceira hora (cerca de 9 horas da manhã), de forma zombeteira;
e, cerca de seis horas depois da crucificação, (com os passantes escarnecendo de Jesus: "Salva-te a ti mesmo e desce da cruz"), Ele clamou: "Deus, meu Deus, por que me abandonaste?". E, a seguir, expirou.
6. ANÁLISE DO EVANGELHO DE MATEUS
O Evangelho de Mateus, nesse episódio, em linhas gerais, repete o que diz o Evangelho de Marcos, acrescentando, porém, o seguinte:
que duas testemunhas afirmaram, quando do interrogatório noturno na casa de Caifás (Sumo Sacerdote), terem ouvido Jesus dizer que podia "derrubar o templo de Deus e em três dias reedificá-lo";
e que Jesus, ao ser instado por Caifás sobre isso, nada respondeu;
fala também do arrependimento de Judas, que devolveu as trinta moedas de prata aos principais sacerdotes e anciãos, mas Jesus já estava diante do Governador Pilatos;
que a mulher de Pilatos pediu para que ele não se envolvesse "com o sangue desse justo", porque em sonhos muito sofrera por causa dele;
e Pilatos, vendo que não conseguia demover a turba, uma vez que a multidão era insuflada pelos principais sacerdotes e anciãos, que queriam a morte de Jesus, tomou água e lavou as mãos diante do povo, dizendo: "Sou inocente do sangue deste justo", e libertou Barrabás, açoitou Jesus e o entregou para ser crucificado.
7. ANÁLISE DO EVANGELHO DE LUCAS
Já o Evangelho de Lucas traz algumas diferenças marcantes, tais como as seguintes:
Jesus estava com seus discípulos, no Monte das Oliveiras, quando Judas, com seu beijo, o entregou à turba composta pelos principais sacerdotes, os chefes da guarda e os anciãos;
na casa do Sumo Sacerdote, bateram em Jesus e dele zombaram, vendando-lhe os olhos e perguntando-lhe: "Profetiza: quem foi que te bateu?" de manhã, reunidos os principais sacerdotes, os anciãos do povo e os escribas, Jesus foi trazido diante de concílio, quando então lhe perguntaram: "És tu o Cristo?" E Jesus respondeu: "Se vos disser, não acreditareis.... Mas, desde agora, o Filho do Homem se sentará à direita do Poderoso Deus". E todos disseram: Logo, tu és Filho de Deus". E Jesus respondeu: "Vós dizeis que o sou"; e toda a multidão levou Jesus a Pilatos, acusando-o assim: "Perverte a nação e proíbe de dar tributos a César, dizendo que ele mesmo é um rei". E Pilatos o interrogou: "És tu o Rei dos Judeus?" E Jesus respondeu: "Tu o dizes".
E Pilatos disse a todos os resentes: "Nenhum delito acho neste homem"; depois, sabendo que Jesus era galileu e da jurisdição de Herodes, que reinava na Galiléia e que, naquele dia, também se achava em Jerusalém, mandou que O levassem àquele rei; Herodes alegrou-se ao ver Jesus, porque ouvira falar dele e queria vê-lo fazer milagres;
porém, dirigindo algumas perguntas a Jesus e este se mantendo em silêncio, Herodes escarneceu dele e mandou-o de volta a Pilatos;
e até por isso houve reconciliação entre Herodes e Pilatos, que eram inimigos;
e Pilatos, convocando os principais sacerdotes, os anciãos e o povo, disse que, tendo interrogado a Jesus e nele não achando crime algum, e também Herodes não O considerando culpado, iria soltá-lo, depois de tê-lo castigado; mas Pilatos não pôs Jesus em liberdade, fazendo-o a Barrabás (preso por sedição e homicídio), atendendo ao clamor da multidão e dos principais sacerdotes; e na hora Sexta (que é meio dia), houve treva sobre toda a terra, e, na hora nona, Jesus clamou em voz alta: "Pai, em tuas mãos encomendo meu espírito", e expirou.
8. ANÁLISE DO EVANGELHO DE JOÃO
No Evangelho de João, há outras diferenças, como podem ser observadas a seguir:
Jesus com seus discípulos em um horto, do outro lado do Cedron, sendo o lugar conhecido por Judas, que lá estivera com Ele e os demais seguidores;
Judas tomou uma companhia de soldados e guardas dos principais sacerdotes e dos fariseus, conduzindo-os ao lugar com lanternas, tochas e armas;
Jesus perguntou: "A quem buscais?", e a resposta foi: "A Jesus, o Nazareno". E ele disse: "Sou eu". E a companhia de soldados, o tribuno e os guardas dos judeus o prenderam e amarraram;
foi levado primeiro à casa de Anás, sogro de Caifás (sumo sacerdote), tendo este último interrogado Jesus sobre seus discípulos e sua doutrina;
Jesus respondeu a Caifás: "Sempre ensinei nas sinagogas e no templo, e nada falei às ocultas. Por que perguntas a mim? Pergunta aos que escutaram, o que lhes falei eu". E um guarda que ali estava deu uma bofetada em Jesus, dizendo: "Assim respondes ao sumo sacerdote? "E Jesus disse: "Se falei mal, testemunha em que está o mal; e se falei bem, por que me bates?";
Anás enviou Jesus amarrado a Caifás, onde foi mantido até de manhã, sendo dali conduzido ao tribunal; mas os que conduziram (não se sabe quem foi) "não entraram no pretório para não se contaminarem e poderem comer na páscoa";
Pilatos veio do Tribunal e perguntou aos condutores de Jesus a respeito de que o mesmo era acusado, ao que lhe responderam: "Se não fosse malfeitor, não o entregaríamos a ti". E disse Pilatos: "Tomai-o e julgai-o segundo a vossa lei". Mas os "judeus" responderam: "A nós não nos é permitido matar ninguém";
Pilatos voltou ao pretório (tribunal) e perguntou a Jesus: "És tu o Rei dos Judeus? Tua nação e os principais sacerdotes te entregaram a mim. Que fizeste?" E Jesus respondeu: "Meu reino não é deste mundo". Voltou Pilatos a perguntar: "Logo, tu és rei? "E disse Jesus: "Tu dizes que eu sou rei. Eu para isto nasci e para isto vim ao mundo. Para dar testemunho da verdade".
foi Pilatos outra vez "aos judeus", dizendo que não havia achado nenhum delito em Jesus; porém, alegando que os judeus tinham o costume de libertar um preso na Páscoa, perguntou: "Quereis, então, que vos liberte o rei dos judeus?" E todos gritaram: "não este, mas Barrabás"; e o evangelista explica que este era ladrão;
Pilatos voltou a sair do tribunal, dizendo ao povo não ter achado delito em Jesus, este trazendo uma coroa de espinhos e um manto de púrpura, tendo assim acrescentado aos principais sacerdotes e aos guardas: "Eis o homem". E todos gritaram: "Crucificai-o! Crucificai-o!" E Pilatos disse: "Tomai-o vós e crucificai-o, porque eu não achei delito nele";
os judeus responderam: "Nós temos uma lei, e segundo essa lei ele deve morrer, porque fez a si mesmo Filho de Deus". E Pilatos teve medo destas palavras, retornando ao tribunal com Jesus, a quem perguntou: "De onde és?", e não recebeu resposta;
e disse Pilatos: "Não sabes que tenho autoridade para crucificar-te e para salvar-te?" E respondeu Jesus: "Nenhuma autoridade terias contra mim, se ela não te fosse dada de cima";
e quando Pilatos tentou pôr Jesus em liberdade, os judeus gritaram: "Se a estes soltas, não és amigo de César. Todo aquele que se faz rei se opõe a César". E Pilatos levou Jesus para fora, sentou-se no Pavimento e disse: "Eis aqui o vosso rei". E os judeus gritaram: "Fora, fora, crucificai-o". E perguntou Pilatos: "Ao vosso rei devo crucificar?" E os principais sacerdotes responderam: "Não temos outro rei senão César";
e Jesus foi entregue nas mãos dos judeus para que fosse crucificado, e estes o levaram; Jesus carregava a cruz ao lugar chamado de Caveira (Gólgota, em hebreu), e ali o crucificaram, tendo sido Pilatos quem escreveu uma inscrição colocada sobre a cruz: "Jesus Nazareno, Rei dos Judeus", em hebraico, grego e latim;
os principais sacerdotes judeus se dirigiram a Pilatos: "Não escreva Rei dos judeus, mas que ele (Jesus) disse: "Eu sou o rei dos judeus", ao que Pilatos respondeu: "O que escrevi, escrevei";
e, por fim, Jesus despediu-se de sua mãe e de seu discípulo, dizendo que tinha sede; então havia ali uma vasilha de vinagre, e, com uma esponja em sua boca, Jesus bebeu vinagre e disse: "Está consumado"; e, inclinando a cabeça, entregou seu espírito.
Com essas e outras observações, confrontando os quatro Evangelhos – de Marcos, Mateus, Lucas e João -, o juiz Haim Cohn procura mostrar as informações, em alguns casos, até contraditórias entre os evangelistas, cada um deles escrevendo sobre os mesmos fatos em épocas diferentes, para concluir que esses escritos não podem ter valor científico como história.
9. JESUS FOI CONDENADO POR TRIBUNAL JUDEU?
Numa análise mais profunda do Direito antigo, para verificar se os judeus – embora tendo suas próprias normas, mas achando-se sob o domínio romano – tinham o poder de aplicar a pena de morte, o magistrado Cohn leva-nos a melhor refletir sobre a condenação e crucificação de Jesus. Mostra, por exemplo, os seguintes registros:
de um sumo sacerdote que solicitou autorização do governador romano para convencer o Sinédrio para tratar de um possível caso de pena de morte;
que em papiros egípcios encontra-se que governadores romanos no Egito costumavam utilizar os tribunais locais para efetuar investigações preliminares;
a tradição encontrada, tanto no Talmude da Babilônia como no Talmude de Jerusalém, segundo a qual, quarenta anos antes da destruição do templo, foi retirada de Israel a autoridade para impor a pena de morte. (Observação: a destruição do templo corresponde à perda de autonomia judia, ao desaparecimento da soberania política da Judéia).
Assim, o autor Haim Cohn conclui: se, quarenta anos antes da destruição do templo, já se havia tirado os judeus o direito de julgar questões penais de vida ou morte, não poderia ter sido um tribunal judeu que condenou Jesus à pena capital.
Foi, segundo o Dr. Cohn, de acordo com registros da tradição babilônica e jerololimitana, que "os cristãos começaram a publicar e difundir textos de propaganda e apologia, na segunda metade do século II, para sublinhar e realçar as diferenças entre eles e os judeus, não apenas no que se refere à fé, como também à fidelidade política aos governantes romanos".
"Já haviam sido publicados os Evangelhos, nos quais a tendência a desprestigiar os judeus encontrou um fundamento de peso. Se o fundador da religião cristã e seu criador. (Jesus) era inocente aos olhos do governador romano, que não encontrou mácula nele nem em sua religião, isso aparentemente comprovaria que a dita religião pode coexistir com a fidelidade ao Império". (grifos nossos). E conclui o magistrado Haim Cohn: "E se apesar de tudo Jesus foi crucificado como um criminoso, isso se deve apenas à maldade dos judeus e de seu Sinédrio, que sabiam muito bem como era grande para eles o perigo implícito na nova religião, que terminaria acabando com a religião dos judeus".
O livro mostra que não havia sido encontrada prova de que as autoridades romanas tivessem alguma vez concedido autoridade judicial ao Sinédrio de forma explícita, fosse genericamente para o direito penal ou fosse para certos delitos em casos particulares. "O Sinédrio nada mais era do que um tribunal local em sua terra ocupada, que atuava apenas sob a autoridade do governador (romano) e segundo a sua vontade".
"Em resumo",- esclarece o autor-, " o Sinédrio só estava autorizado a julgar delitos segundo a lei judia, assim como o governador romano só estava autorizado a julgar delitos segundo o Direito Romano".
Por exemplo, profanar o templo não representava delito, de acordo com o Direito Romano, mas o era segundo o Direito Judeu: nesse caso, o governador romano poderia entregar o assunto para o Sinédrio.
10. CONTROVÉRSIAS EVANGÉLICAS E AS LEIS ROMANAS E JUDIAS
No Evangelho de Lucas, quando a multidão (de judeus) levou Jesus a Pilatos, depois de o terem interrogado (os principais sacerdotes e anciãos), foi o Nazareno acusado: "Perverte a nação e proíbe de dar tributo a César, dizendo que ele mesmo é um rei". Aí, pelo evangelista Marcos, Jesus estaria sendo acusado pelos judeus como tendo infringido a lei romana, pois se colocava como rei e desafiava o Imperador Romano. Já no Evangelho de João, quando Pilatos entrega Jesus aos judeus, dizendo: "Tomai-o e crucifica-o, porque eu não achei nenhum delito nele", os judeus responderam: "Nós temos uma lei, e, segundo a nossa lei, ele deve morrer, porque fez a si mesmo Filho de Deus". Aqui, evidentemente, por esse relato de João, Jesus teria infringido a lei judia!
Aliás, o registro do Evangelho de João vai mais longe: quando Pilatos tentou pôr Jesus em liberdade, os judeus gritaram (preferindo que Barrabás fosse solto): "Se este soltas" (referindo-se a Jesus), "não és amigo de César. Todo aquele que se faz rei se opõe a César". Assim, depois que João escreveu que, segundo a lei judia, Jesus deveria morrer, "porque fez a si mesmo Filho de Deus", procura mostrar que os judeus, vendo a intenção de Pilatos em soltar Jesus, teriam como que colocado o governador contra a parede: "se soltas um homem (Jesus) que se faz rei e se opõe a César, então não és amigo de César!"
Por outro lado, o Evangelho de Marcos registra que Jesus praticou blasfêmia diante do sumo sacerdote, quando este o interrogou; "És tu o Cristo Filho de Deus?", e o Nazareno respondeu: "Eu sou". E o sumo sacerdote, diante do concílio, interrogatório em sua casa, disse: "Ouvistes a blasfêmia?" (E colocar-se na posição de Filho de Deus, para a lei judia, era delito de blasfêmia, que podia levar à morte!) É claro que os interlocutores ou não entendiam ou não queriam entender o que Jesus dizia!
Embora de relance, pelo Evangelho de Mateus, Jesus também teria praticado delito contra a lei judia, quando registra que duas testemunhas afirmaram que, no interrogatório noturno, na casa de Caifás, o Nazareno teria dito que podia "derrubar o templo de Deus e em três dias reedificá-lo".
11. MAIS COERENTE É O EVANGELHO DE JOÃO
O livro do Dr. Haim Cohn, para demonstrar uma espécie de tendência não discutida quanto à responsabilidade dos judeus pela morte de Jesus, cita inclusive a existência de dois outros personagens com o nome JESUS: um teria sido bruxo e instigador (bruxaria e instigação tinham a pena de morte pela lei judia), sendo a sua morte por lapidação, às vésperas da páscoa (conforme registro do Talmude Babilônico); chamava-se Ben Setda ("Ben", no hebraico, é Filho; "Setda", segundo os sábios amoraítas, é pseudônimo talmúdico de Maria, mãe de Jesus). É registro do século III, d. C., refletindo uma tradição equivocada, pois tal personagem foi preso e morto na cidade de Lod; e outro, que existiu aproximadamente entre os anos 150 a 100 a.C. também instigou os judeus à idolatria e, por isso, foi condenado à morte por lapidação (apedrejamento) pelo tribunal, às vésperas da páscoa, sendo depois o seu corpo colgado (pendurado na madeira) e, no mesmo dia, enterrado. Esse segundo Jesus teria sido aluno de Joshua Ben Perahya. O autor registra, até, que o nome de Nazaré (de Jesus de Nazaré) teria nascido de um acréscimo, por desconhecimento de cronologia histórica, apenas porque no Talmude Babilônico há o relato de que Joshua Ben Perahya "empurrou Jesus de Nazaré com ambas as mãos". Teria vivido antes do Cristo. Não há fonte talmúdica que afirme o julgamento de Jesus de Nazaré.
O magistrado Haim Cohn, depois de analisar tantos documentos e de confrontar as inúmeras versões sobre o julgamento de Jesus, pondo inclusive por terra a eventual conspiração de Judas, que teria ajudado, por moedas, na busca e prisão do Nazareno (porque Jesus era sumamente conhecido, e os seus percursos em Jerusalém e nos arredores eram de conhecimento geral, não havendo objetivo real e justificativa plausível para a traição, nem razão histórica para isso), mostra-se propenso em aceitar que o relato do Evangelho de João é o mais coerente: segundo esse evangelista, Jesus foi preso por "um tribuno romano no comando de sua corte, toda ou parte dela, em presença da guarda do templo". Entende que o relato merece fé, e já foi aceito pela maioria dos pesquisadores, "porque, de todos os evangelistas, é João o que mais exagera na defesa dos romanos e na crítica aos judeus".
Os livros de Marcos, Mateus e Lucas são chamados de Evangelhos sinópticos (porque permitem uma visão de conjunto de suas versões) pelo Dr. Haim Cohn, pois, dentre outros registros, falam que, no momento da prisão de Jesus, a multidão estava armada com espadas e garrotes ou porretes, enquanto João fala de velas, tochas e armas, não restando dúvidas de que as armas eram dos soldados romanos.
12. OS RELATOS EVANGÉLICOS E A REALIDADE HISTÓRICA
Com base do Direito Judeu, o autor entende que nos registros dos Evangelhos há muita coisa irreal e impossível, especialmente em relação ao Sinédrio:
este não podia se reunir para casos de direito penal, na casa do sumo sacerdote, mas só no recinto oficial;
não estava autorizado a se reunir à noite;
casos possíveis de pena de morte não eram julgados em dias festivos, nem em vésperas de festa;
nenhum acusado pode ser condenado à morte pela sua confissão;
só se condena um homem em julgamento, se pelo menos duas testemunhas o tenham visto cometer o ato de que é acusado;
só será condenado o homem, se duas testemunhas disserem que o preveniram para não praticar o ato;
o blasfemo não é considerado culpado desde que não pronuncie expressamente o nome de Deus, na presença de testemunhas".
Se o julgamento assim se deu, "foi ilegal desde o início até o fim", e "Jesus foi vítima de um assassinato judicial".
Depois de provar que os relatos evangélicos não servem como relatos válidos para a história como ciência, o magistrado Haim Cohn explica que "as perseguições aos judeus, judiciais e extraconjugais, todas elas se produzem no fundo da fonte consciente ou inconsciente, como castigo pela "culpa deles" na crucificação de Jesus. Isso porque, o interesse dos Evangelhos era eminentemente religioso e missionário, e sua tendência era apologética com respeito ao Império Romano. Essa descrição intencional e equivocada obteve difusão mundial, convertendo-se em dogma e conquistando a metade do orbe. Foi apagada e esquecida a verdadeira realidade histórica".
É um livro que exige do leitor muita reflexão, sem preconceito.
(*) Bismel B. Moraes, Mestre em Direito Processual pela USP, Professor da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra" de São Paulo e da Faculdade de Direito de Guarulhos, é ex-Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo.
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