domingo, 9 de janeiro de 2011

Clarice Lispector, Renato Russo e um Mendigo

"Sou inquieta, áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que eu não sei usar amor. Às vezes arranha. Feito farpa. Se tanto amor dentro de mim. Eu tenho, mas no entanto continuo inquieta. É que eu preciso que o Deus venha. Antes que seja tarde demais". Que o Deus venha (Frejat e Cazuza, sobre texto de Clarice Lispector)

"E qual dentre vós é o homem que, pedindo-lhe pão o seu filho, lhe dará uma pedra?" (Mateus, cap. 7).

"O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempr"e que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes" ( Mateus, cap. 25)

"E ao transformar em dor o que é vaidade. E ao ter amor,se este é só orgulho.
Eu faço da mentira, liberdade. E de qualquer quintal, faço cidade. E insisto que é virtude o que é entulho. Baldio é o meu terreno e meu alarde" (os Barcos, Renato Russo)


Já deu para perceber que eu coloco aqui meus defeitos e acabo colocando as minhas virtudes por tabela. Meu compromisso é com meus sentimentos, em renová-los, para isso preciso ir destrinchando as coisas, aproveitando o que a vida vai me oferecendo de exercícios de vivência.

Conforme a Clarice alertou, também sou inquieto. Namoro hoje com uma pessoa tranqüila e estável emocionalmente. Já tive relacionamentos com pessoas inquietas como eu e foi um desastre. No trabalho me dou melhor com pessoas mais tranqüilas (com trema e tudo). Mas os inquietos também amam. Sei que ser assim foi uma opção espiritual antiga, mas que venho dia a dia me observar e tentando me corrigir. Sei que usei a inquietude como força, como alavanca para muito das coisas que realizei até aqui. Mas tenho dado muitas trombadas, principalmente com pessoas que eu amo.

A vontade é mesmo de viver melhor e aproveitar melhor o momento. Viver a essência. Cuidar do jardim para que eu goste dele e outros possam visitá-lo. Clarice não escondeu dela o sentimento que tinha. Por fora ela admitia como ela agia e por dentro ela não se escondeu, se mostrou, se entendeu. E este exercício de se auto conhecer virou exemplificação e sua poesia entrou para a história.

A letra de Renato Russo, menos conhecida, mostra uma pessoa decide parar de colocar a culpa nos outros e com isso realizar críticas ferozes, decide olhar para si, escutar o próprio coração. Renato Russo parou de insistir no entulho e escutou no fundo da alma o seu próprio coração, este não desejava ser defendido, mas escutado. E a mensagem que ele dizia era: sinto saudades.

Nosso coração fica numa sala fechada por portas e janelas. Fica ali dentro, normalmente sozinho. Ele grita, clama e normalmente não damos bola a ele, só damos bola ao nosso racional. Nosso coração é doce e paciente, mas está sofrendo, pois sente muitas coisas mas não é percebido por nós. Como você se sentiria se estivesse no lugar do seu coração, chamando a atenção na sela solitária, ouvindo barulho de gente do lado de fora, pedindo ajuda, mas ninguém respondendo? Olha a dor que nossos corações passam a vida toda.

Fazer a reforma íntima, a caderneta pessoal, é ouvir a voz do coração, escutar os sentimentos que temos e procurar entender e reformá-los. Seremos mais felizes assim. A caderneta é apenas uma porta que entra na sela em que o coração está. Existem outras. Mas é uma das mais eficientes maneiras de estar com ele, escutá-lo acolhê-lo.

Um mendigo bate à minha porta. Pode ser no centro, no trabalho, no facebook, onde for. Hoje o mendigo é ele, amanhã poderei ser eu pedindo algo a uma pessoa. O mendigo tem ao fundo um patrocinador, Jesus. Se eu não der o pão, outro dará e eu terei a oportunidade de ajudar perdida. Jesus me dará outras oportunidades, mas aquela já foi. Mas eu posso piorar, dando pedra ao mendigo. A pedra, fria, símbolicamente a própria dureza de sentimentos. Não é assim que Deus funciona e não é isso que ele quer de mim. Ele quer que eu seja doce e amoroso com todos os que batem em minha porta.

E se o mendigo for uma pessoa que amo profundamente. Será só um pão, ou mais que isso, darei ainda abrigo, roupas novas e hospitalidade.

Por mais inquieto que eu seja, não posso insistir numa "virtude", que na verdade é entulho e devo ao meu próximo o pão da vida.

Mas hoje sou o mendigo aqui, parado à porta, pedindo que me dêem um pedaço simples de pão velho. Uma coisa simples, que sei que podem me dar e eu ficaria feliz e me iria com coração em chamas de ternura. Estão me respondendo com a pedra da indiferença. Ao invés de ficar mal com isso, ontem descobri um caminho: envolver de fato estas pessoas, com muito amor, o mesmo amor que eu daria, o mesmo abraço que eu daria, se eles permitissem. Dentro de mim vivo este amor, me felicito. Sei que outros me dão o pão, muitos me darão, mas a estes fica aqui uma delicada rosa branca em sua porta, presente deste roseiro árabe.

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